sábado, 25 de outubro de 2008

Segunda oportunidade

- Precisava bater com a porta desse jeito, dona? - Lamentou-se depois da mulher entrar. E só então reparou no tamanho do barrigão que entrara com ela. Pelo espelho retrovisor viu o seu rosto contorcido de dor. Franziu as sobrancelhas e exclamou baixinho:
- Ih... Vem aí sarilho! - Decididamente, aquele não era o seu dia.
Ela nem precisou de dizer para onde queria ir. Ele também não perguntou. Meteu a primeira, arrancou, passou à segunda, à terceira, mas o semáforo avermelhou cinquenta metros à sua frente.
- Oh dona, passo ou espero? - Perguntou nervoso.
- Não sei... - A sua voz era um fio débil e sussurrante. - Pode esperar, acho...
Olhou outra vez pelo espelho. Ela tinha as mãos cruzadas sobre o ventre e segurava, apertava, movia incessantemente os dedos, amarrotando o vestido, demasiado leve para o frio de Outono.
Nunca lhe havia acontecido "aquilo". Ele evitava casamentos, baptizados, funerais, tudo o que pudesse ser fastidioso, demorado ou desagradável. Agora "aquilo"... Oh céus, tinha de ser logo com ele! De entre todos os táxis da cidade, ela escolhera logo o dele, e ele também fora logo enveredar por aquela rua e apanhar a cliente mais barriguda da sua vida. Para estragar ainda mais o seu dia...
O verde surgiu e ele arrancou o mais depressa que podia, fazendo chiar os pneus no asfalto. Um último peão correu à sua frente e soltou um palavrão.
- Desculpe, dona! - Mas pensou que ela nem sequer o ouvira.
Começou a buzinar para os carros à sua frente, mas não havia meio de se desviarem, indiferentes à sua pressa.
- Taxista tem fama de apressado... - Comentou em jeito de desculpa, esboçando um sorriso, mas lá atrás a sua cliente contorcia-se mais que um equilibrista de circo. Só então se lembrou do que podia acontecer.
- Oh dona, não vai sujar o meu carro, pois não?
Ela murmurou, aflita e envergonhada:
- Já sujei...
- Oh, meu Deus! Não podia ter ido mais cedo? Só a mim! Valha-me Deus!
Veio-lhe à lembrança a família. Que diabo! Que raio de ideia mais disparatada numa hora daquelas. Mas recordara-se da zanga matinal com a mulher. O que aliás parecia ter-se tornado um hábito, todas as manhãs. Eram queixas atrás de queixas, porque cada dia chegava mais tarde a casa, porque nunca telefonava, porque ela não gostava que fizesse o turno da noite. Via-se tanta coisa. Liam-se aquelas notícias nos jornais. Era perigoso. E depois, ele bem sabia, até já tinha acontecido a um amigo e colega seu, não tinha? Ele sabia lá o que era estar à espera todas as noites sem conseguir pregar olho, olhar de soslaio o telefone e rogar-lhe todas as pragas do mundo ou rezar a Deus para que não tocasse e viesse de lá uma notícia daquelas...
Mas ele teimava sempre em fazer o serviço nocturno. Dava mais, desculpava-se. Sim, que a vida não estava para ninguém, a não ser para aqueles que já nasciam com o pão na boca, sem precisarem de lutar para oi ganhaarem. E depois, ir mais cedo para casa para quê? Para ficar de pantufas, estendido no sofá a ler o jornal ou a ver televisão e envelhecer ou adormecer em dez minutos, com o estupor do gato a amarinhar-lhe pelas pernas acima? Nunca conseguira entender lá muito bem que estranha atracção era aquela que fazia com que o bicho gostasse tanto de cardar as suas calças e arranhar-lhe a pele. Ou então andar a passear de costas no fundo do sofá, agarrando-se com as unhas, com um barulho de tecido a rasgar-se... Mas que o irritava, ah, lá isso irritava.
E se a mulher já nem conversava consigo como dantes... Às vezes, ficavam sentados ao lado um do outro, à noitinha, sem saberem o que dizer, como se tivessem gasto todas as palavras, ou estas tivessem envelhecido tanto como eles. Até que um deles adormecia primeiro...
Mas aquele barrigão lá atrás incomodava-o. Lembrou-se de repente numa frase que lera numa das revistas femininas que a mulher tanto gostava de ler, enquanto o gato trepava por ele acima: " A mulher é uma ilha ". Pensou que sim, que eram ilhas as mulheres. Cada uma diferente da outra, mas todas rodeadas pelo mesmo mar que a uns dá bom porto e a outros faz naufragar. Olhou de relance pelo retrovisor. O corpo da mulher no banco de trás também lembrava uma ilha, o ventre inchado da criação, os seios hirtos como colinas...
A mulher gemeu e ele sentiu pena. Ela para ali a sofrer e ele a dar~lhe para versejar. Um nó profundo começou a crescer na sua garganta. Raios o partissem! Então, ia ficar comovido agora? Não tinha já problemas que lhe chegassem? Queria lá saber dos problemas dos outros!
Lembrou-se então dos filhos que não vira nascer. E pensou que também não os vira crescer. Um dia qualquer, ao chegar a casa, encontrara-os já grandes, vivaços e espertos, prontos para a vida, sem nunca lhe terem feito uma daquelas perguntas embaraçosas que as crianças costumam fazer aos pais na sua ânsia de saberem coisas. Questionou-se se alguma vez eles o teriam olhado como um estranho que todos os dias encontravam na sua mesa de refeições...
Curiosamente, sabia o que haviam perguntado os filhos dos seus colegas, porque esses comentavam com orgulho as conversas que mantinham com os seus mais pequenitos. Ah, como ele se sentira um estranho nesse dia em que os descobrira crescidos. Porque costumava chegar tarde a casa...
A mulher soltou o primeiro grito, quebrando aquele silêncio que já o incomodava. Raios partissem o maldito do trânsito que não o deixava avançar!
Tentando dar um tom terno à voz, perguntou:
- É o primeiro?
Pelo retrovisor, viu-a acenar que sim.
- Então e o pai, não veio?
- Pai não tem... - Respondeu ela num sussurro.
- Não tem? Ora essa! Claro que tem! Pai todos têm! Pai há sempre, como mãe! - Ripostou ele orgulhoso. E lá vieram mais uma vez à memória os filhos que não vira nascer nem crescer. O nó da garganta tornou-se maior.
- O pai não soube... - Murmurou ela, depois dum grito maior que o anterior. Ele não ousou perguntar mais nada, sem saber se o pai morrera ou simplesmente não quisera saber e abandonara ambos. Era triste na mesma.
Foi então que ela se ergueu e apertou com força o seu ombro.
- Estamos quase, dona, são só mais cinco minutinhos... - Mas sabia que eram dez ou mais com aquele trânsito.
- Não!
A segurança de muitos anos de condução deixou-o voltar a cabeça para trás e olhá-la. O rosto suado e desfigurado disse-lhe o que os lábios não conseguiam articular. E então, ele teve a certeza: ia ser ali mesmo. No seu táxi, na rua. E logo agora que estavam na parte mais isolada do percurso, sem ninguém para ajudar, alguém que pelo menos percebesse mais do que ele. Logo agora, que seria bem mais rápido chegar ao hospital! Logo com ele, Santo Deus! Ele que não sabia o que fazer, que nunca vira nenhuma criança nascer!
Um grito agudo fê-lo parar o carro. Saiu a correr e abriu a porta de trás.
- Pronto! Está bem, está bem, dona...
A mulher gritava, suava e apertava a barriga e as suas mãos ao mesmo tempo.
- Sabe, dona... Eu nnão vi nascer os meus filhos... Eu não vi nascer ninguém... - Murmurou como se fosse mais uma desculpa. - Nem sei o que os meus filhos pensam, nem do que gostam... Nem sei onde estão neste momento... Sei lá... Podem estar na escola ou não...Nunca pensei... Ih, dona, dói muito?... Pergunta parva a minha, pois claro que dói! Nunca pensei que pudesse doer tanto! Eu nunca os vi nascer... Respire fundo! Isso, assim! - Passou-lhe as mãos pela testa, afagando-a com emdo e reverência, afastando os cabelos molhados em suor. - Isso, isso, devagar, devagar... - Pensou que não podia fazer mais do que deixar a natureza seguir o seu caminho e agir por si própria. Só aquela espera e a dor da mulher o angustiavam.
- Falta muito?... Não, não falta, vai ver... Mais um pouquinho e está cá fora... Vai ser um rapagão ou uma moçoila linda como a mãe... Linda, vai ver... Oh dona, não chore, que é lá isso agora? Respire fundo, vá! Está quase... - Não fazia a mínima ideia de se ela deveria ou não respirar fundo. Mas pareceu-lhe uma boa ideia, para a mulher descansar um pouco e recuperar forças.
Não soube então qual dos dois gritou primeiro ou mais alto:
- Já o vejo!... Ou "a"! Mas vem aí! Está quase... - Sentia-se agora como se aquela luta fosse sua também, como se fizesse parte dele. Aquele grito não saíra somente da sua garganta, mas do seu coração. Aquele grito era ele mesmo, o homem que não vira nascer os filhos.
Depois houve ujm silêncio bem grande grande entre os dois. Um silêncio que só o choro do terceiro quebrou.
- Dona, é uma menina... - Exclamou emocionado e maravilhado. E ergueu-a pelos pés de cabeça para baixo, porque vira um actor fazer assim num filme há muitos anos atrás.
- Agora dona, fique aí muito quietinha que vamos já para lá... Eu vou com cuidado! Agora já passou... - Depositou a criança sobre o ventre da mãe que ria e chorava ao mesmo tempo.
Correu para a frente, pôs o veículo em movimento e nunca aquele percurso lhe parecera tão longo...
Vieram ajudá-lo com uma maca à porta do hospital, e ele ficou por momentos parado a vê-las desaparecer dentro das portas de vidro.
Já se ia embora quando viu uma mulher a vender flores na esquina da rua. Parou de novo e comprou dois ramos, sem sequer se importar em saber que flores eram. Desatou a correr pelo hospital dentro como um louco. Parou ao pé da maca sem reparar no olhar divertido e surpreso das enfermeiras. Depositou um dos ramos sobre o peito da mulher. Ela sorriu, comovida, apertou as suas mãos e perguntou:
- E o outro ramo para quem é?
só então ele mirou as flores, duma espécie que desconhecia e murmurou sorrindo:
- São para outra mãe...
- Não lhe paguei a corrida... - Lembrou-se ela.
- Pagou sim, dona... Nem sabe como me pagou... - Acenou adeus, desejou felicidades e afastou-se.
Eram para outra mãe as flores. Era para uma mãe que já tinha tido os filhos há muitos anos e ele quase nem dera por isso. Eram para outra mãe, que não recebera flores pelos seus gritos e pelas suas dores. Talvez ainda tivesse tempo de poder ver os filhos crescerem um pouco mais...
Naquele dia, iria cedo para casa. Sentar-se-ia em frente áquela outra mãe e haviam de conversar, conversar... Porque na verdade assunto era o que não lhe faltava...

1 comentário:

Armindo de Vasconcelos disse...

Adoro este multiplicar de personalidades, cada qual com o seu canto, quase o seu mundo.

Os diferentes bloguees são quase heterónimos...

Que bom!