sexta-feira, 23 de abril de 2010

Segredos do liceu

Para muitos de vós hoje andar numa escola secundária é uma coisa banal. Aqui há uns anos não era. Era um ritual de passagem que nos acompanhava na adolescência, algures entre os doze e os dezassete anos, quando nós crianças começávamos a sentir-nos mais importantes, mais pessoas, quando os adultos nos davam mais atenção.
Há muitos anos atrás o liceu onde eu andei era um edifício cor de rosa, majestoso que ocupava um quarteirão inteiro, ali para os lados de Campolide. Penso que continua a ser imponente, mas de facto há muitos anos que não passo à sua porta. Lá por dentro, era um universo esmagador, sobretudo para quem vinha duma escolinha preparatória de bairro.
Assim que entrávamos ficávamos quase esmagados pelas imponentes escadas de pedra que dominavam o hall e que, depois do primeiro lanço, se dividiam em dois, para a direita e para a esquerda. Aliás, escadas não faltavam no liceu. Em cada ala, uma escadaria, no mínimo. Uma mais valia para as fugas e um tormento para os contínuos que nos perseguiam. Três enormes andares que varriam o edifício dum lado ao outro e um sótão que poucos como eu tiveram o prazer de descobrir, bem como umas janelinhas tipo águas furtadas que davam directamente para o telhado e, num dia de má sorte, directamente para a rua em queda livre, uns metros suficientes para se ficar esborrachado no empedrado. Obviamente que estes perigos não estavam ao alcance de cada um, mas havia portinhas secretas que descobrimos e mantivemos no silêncio. Éramos aventureiras, mas não inconscientes e assim como queríamos manter os nossos cantinhos secretos no anonimato, também queríamos manter algumas companheiras mais levianas fora de perigo.
Sempre fui boa aluna. Mais atenta que marrona, sossegada e calada nas aulas. Um terror nos intervalos e uma agente infiltrada da malandrice. Pequenina, gordinha, cabelos até ao rabo. Uma entre muitas. E se pensam que me deixava ficar perante um comentário menos nobre ou um puxão de cabelos, enganam-se. Quem o fizesse estava na calha. Ou era logo, ou mais tarde, mas não escapava e com requintes de malvadez infantil. Fisgas, rasteiras, partidas, entrei no liceu com mestrado. Fruto de ter sido criada com dois irmãos mais velhos. Claro que tinha as costas quentes. Em casa era uma guerra diária, mas fora de casa, ai de quem tocasse na menina. E no entretanto, aprendiam-se todos os truques.

1. Dentadas

Comecei o liceu á pancada, ou melhor à dentada. Jogava andebol. Havia uma colega que tinha o hábito de nos tirar a bola à dentada, mordendo-nos nos dedos, às vezes com bastante força. Tanta vez fomos mordidas que um dia achei que aquilo era demais e fui-me a ela. Quando vi as marcas dos dentes no meu pulso, soltei o diabo. Uma cabeçada na barriga e uma estalada aplicada in tempu. Acabámos as duas no balneário para arejar. Nesse ano e no seguinte nunca mais nos falámos. Mais tarde, ficamos sós numa turma nova lá para o 5º ano (hoje 9º) e ela foi uma das melhores amigas dessa etapa da minha vida, a maior companheira de aventuras. Na verdade, foi nesse ano que tudo começou.


2. O Chapéu de chuva amarelo com florinhas


Havia no liceu um rapaz grande como um urso. Tinha a mania de se fazer valer do seu tamanho, não só em altura, como em largura e profundidade, para garantir a sua vontade, quer fosse para obter o melhor lugar na fila do refeitório, a melhor mesa para almoçar ou para humilhar a pobre ovelhinha que se cruzasse no seu caminho. Claro que, como é habitual nestas situações, tinha um séquito de admiradores que o seguiam para todo o lado e que lhe levavam o ego às estrelas e o orgulho ao cubo, em troca de protecção e de poderem usufruir de tudo o que ele garantia para si mesmo.
Um dia a ovelhinha fui eu. Engraçou comigo à entrada do refeitório. Teimava em não me deixar passar. A mim e à imensa fila que se começou a gerar atrás de mim.
- Eles passam. Tu não. - Mandava o pequeno-grande ditador.
Atrás de mim começou a gerar-se o coro dos indiferentes. A coisa era comigo, eu devia afastar-me para eles passarem. Não me afastei. De repente lembrei-me de que tinha um chapéu de chuva na mão. Lindo. Amarelo com florzinhas e folho. Não me separava dele por nada, era mesmo bonito. Olhei o urso, olhei o chapéu. Era o meu almoço que estava em jogo. E o meu respeito também.

Ele riu-se. Percebera a intenção e isso era uma piada para ele. Ameacei verbalmente, para não haver dúvidas. Foi a gargalhada geral, quer á minha frente, quer atrás de mim.
- Oh, minorca. - Urrou ele. - Não és capaz de...
Nesse dia fui para casa à chuva, mas com um sorriso nos lábios. Felizmente o rapaz-urso tinha sentido de humor. Ganhei, não um amigo, porque me olhava de soslaio, mas pelo menos o seu respeito disfarçado de indiferença. E claro, o direito a ocupar a melhor mesa do refeitório à hora do almoço.
Mas nunca mais tive um chapéu tão bonito.


3. As aulas de biologia


Tive uma professora de biologia que toda a turma temia. A senhora era idosa, vestia-se duma forma estranha e antiquada e tinha o tenebroso hábito de ocupar o primeiro quarto de hora de aula com chamadas ao quadro. Era um verdadeiro momento de pavor aquele em que ela abria a caderneta de alunos ao acaso e chamava uma de nós pelos números de ordem ou pelos apelidos. Ficávamos encostadas ao quadro, quase atrás da sua cadeira, porque ela necessitava de estar virada para a restante audiência a fim de que ninguém soprasse as respostas.
A professora tinha um enorme carrapito que nos fazia adivinhar um cabelo muito comprido. Claro que eu tinha de tirar isso a limpo.
Fora uma cena que lera num livro e pô-la em prática pareceu-me fácil. Um carrapito daquele calibre não se sustinha sózinho, tinha de estar seguro por montanhas de ganchos. Muni-me de um pequeno iman. Nesse dia, à medida que éramos chamadas, o iman passava de mão em mão e os ganchos desapareciam do seu cabelo. À terceira aluna chamada, uma mecha ficou solta e a gravidade fez o resto. Ela compôs o cabelo do lado esquerdo com paciência e sem desconfiar de nada. Nesse dia, eu fui a última a ser chamada. E o enorme carrapito da minha professora de biologia desabou entre respostas sobre amibas e protozoários.
A senhora desfez-se em lágrimas, talvez pela vergonha de se encontrar com o cabelo descomposto perante a gargalhada de trinta alunas. Nenhuma de nós esperava aquela reacção. Fiquei com remorsos e um coração pequenino. No fim da aula, enchi-me de coragem e fui ter com ela e contei-lhe tudo, assumindo as culpas pelo sucedido. Ainda hoje me lembro da sua resposta com aqueles olhos doces a fitar-me:
- Tu? Oh filha, tu és das
minhas melhores alunas e a mais calada e sossegada. Estás a assumir as culpas por elas, porque sabem que eu não te acredito.
Sem dizer uma palavra, coloquei os ganchos e o iman na sua secretária. Olhou para mim e sorriu:
- Está bem, filha. Diz às tuas colegas que fizeram isto que estão perdoadas. E não quero saber quem foi.
Nunca mais repeti a gracinha


4. As aulas de ciências e o livro dos segredos cujo nome não se diz


Este título parece o nome dum filme de Harry Potter, mas acreditem que a biblioteca do meu liceu tinha qualquer coisa de Hogwarts. Enorme, estantes até ao tecto e claro, os maiores segredos encadernados escondidos nas prateleiras protegidas por portas de vidro e fechados à chave. Eram livros a que só tínhamos acesso por volta do 6º ano (agora 10º) ou com especial permissão dos professores, no 5º ano.
Mas que tesouros eram estes? Livros de biologia, onde se aprendia e via, claramente vista, a reprodução humana e a evolução de um feto, bem como o respectivo nascimento. Livros de psicologia, essencialmente focando os mesmos temas e de Filosofia, incluindo os filósofos mal amados de alguns regimes políticos.
A biblioteca não era guardada por um dragão nem por fantasmas de cabeça decepada nem por Cerberus, mas por uma professora de que curiosamente ainda guardo o nome e os traços de fisionomia. Uma senhora alta, loira, de aspecto distinto e muito bonita, na altura talvez com cinquenta anos. Muito ao estilo de Helga Hufflepuff, para os amantes de Potter. Um tormento para os alunos mais novos a quem aqueles tesouros guardados a sete chaves apelavam, mais tentadores que chocolate; um doce para os alunos dos últimos anos a quem especialmente acolhia e acarinhava.
E quando nós, no nosso imenso orgulho de alunas dos últimos anos, pedíamos para consultar um daqueles livros cujo nome não se diz, ouvíamos sempre a mesma resposta:
- Ah, sim sim, minhas queridas. Mas olhem, não deixem os vossos colegas mais novos ver estes livros está bem?


5. As aulas de físico química


Há pessoas que nos marcam. Pela positiva, pela negativa, ou por outro qualquer pormenor que não sabemos muito bem incluir numa ou noutra categoria. Uma das minhas professoras de físico-química era uma destas pessoas. Personalidade fortíssima, agreste, um crâneo com um QI excepcional, mas que dirigia as suas aulas com mão de ferro e tinha dificuldade em criar pontes com os alunos. Senhora dum porte altivo e já de provecta idade mas tesa como um tronco de árvore, tinha o inefável vício de nos dirigir algumas frases em latim.
Uma delas, era uma expressão latina que transformara numa só palavra e que nos dirigia sempre que espirrávamos:
- Domistecum…
Claro que ao princípio ficávamos a olhar umas para as outras a fim de saber se alguma teria percebido o que ela queria dizer. Um dia houve um crâneo que se lembrou de procurar o significado porque de facto ninguém se atrevia a perguntar à professora.
- Domistecum...
Aglutinação da frase: Dominus Tecum, o senhor é contigo.
A certa altura, achávamos tanta graça à palavra que toda a turma já a repetia em uníssono quando uma de nós espirrava.
Nunca a professora se deu conta de que, mais tarde, o santificado Domistecum geral foi substituído pelo menos ortodoxo e muito menos cristão, mas igualmente soletrado em uníssono, Bardamercum… A terminação “cum”, quase sempre a sílaba mais acentuada por todos, não tinha qualquer conotação escatológica, mas era apenas para que o resto da palavra passasse despercebida.
Enquanto às vezes havia uma alma dorminhoca que se escondia a ressonar na última fila do anfiteatro das aulas teóricas, as aulas práticas eram as mais animadas. Suponho que toda a escola sabia quando a nossa turma estava nos laboratórios. Desde gritinhos, fugas em debandada geral e explosões, houve de tudo. Nunca mais nos esqueceremos do efeito do sódio e do potássio metálicos na água, que nos fez ficar conotadas como incendiárias e terroristas.
E H2S, conhecem? Pois, logo vi. Não sabem latim mas conhecem o princípio das bombinhas de mau cheiro. O sulfeto de hidrogénio que em mistura com água origina o ácido sulfídrico muito nos fez sofrer com o seu encantador cheirinho a flatos, uma verdadeira bomba nauseabunda que tinha o poder de transformar em ausentes todos os presentes num raio de uma ou duas salas em redor. Uma debandada geral.

6. O tecto com cornucópias de papel

Esta não vou contar como foi feita. Foi um complicado trabalho de grupo em que a aerodinâmica e a esperteza venceram a força da gravidade. Um dia conseguimos encher um tecto duma sala de aula com cornucópias de papel, assim uma espécie de cartuchinhos enrolados, com o vértice no tecto e a boca virada para baixo.
A perplexidade da nossa professora de físico-química a olhar para aquele feito heróico foi a nossa recompensa.
Claro que, como toda a acção tem uma reacção, o pior veio depois. Ficámos reféns da professora, dum contínuo, três escadotes, algumas vassouras e outros tantos caixotes de lixo para repor a situação anterior.
Não valeram de nada os nossos argumentos em como os cartuchinhos melhoravam não só a estética daquela sala fria e impessoal como a própria acústica pela reverberação do papel. Mas acho que as nossas notas melhoraram à conta destes argumentos.

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