terça-feira, 27 de abril de 2010

Um desconhecido na foto

Os nossos velhos são o cordão umbilical que nos liga às origens. Mais do que compromissos de ADN, há compromissos do coração que só eles são capazes de nos transmitir.
Quando somos novos, vivemos com os olhos postos no futuro, passamos por cima do presente, atropelamo-lo com os olhos mais além, somos mesmo empurrados para isso. À medida que envelhecemos começamos a viver o presente e a tentar compreender o passado, talvez porque percebemos que um dia, ficaremos sós e na linha da frente, nós próprios repositórios dum passado não muito longínquo.
Chega uma altura em que, em vez de perguntarmos para onde vamos, nos questionamos de onde viemos.
A avó, mais do que uma referência feminina da sua vida, fora um repositório desse passado familiar. Um pequeno cofre com histórias por contar e imensos segredos. Alguns, ela sabia, a avó nunca os quisera partilhar por os considerar escabrosos. Outros, só a doença degenerativa e a memória traidora trouxeram à luz. E não obstante aquele desaparecimento espiritual da avó, lento e profundamente injusto, ela foi construindo peças dum puzzle, decifrando incógnitas que nunca pensara existirem na equação da vida.
Quando a avó partiu, o maior tesouro que lhe deixou foi aquele pequeno baú das fotos. Uma velha mala de cartão com um padrão pied-de-poule intemporal e elegante, cheia de tesouros, mas alguns misteriosos e indecifráveis. E as histórias que ela queria ouvir, já não havia ninguém para as contar.
A saudade é um garrote que aperta o coração, sobe à garganta e nos espreme a alma em lágrimas silenciosas. A coragem viera com a chuva e finalmente resolvera-se a abrir a mala e espreitar o passado. Naquele tarde de Outono, sentou-se de pernas cruzadas no chão, embalada pela tempestade e pela melancolia da perda, mexendo em cada foto como se fossem feitas de papel de arroz e de repente um simples toque as desfizesse.
Alguns desses tesouros eram facilmente identificáveis, com histórias que ela se habituara a ouvir em cochichos atrás das cortinas: um tio-bisavô que um dia saiu para comprar tabaco e nunca mais regressou, deixando a esposa inconsolável e de luto permanente como se tivesse perecido na guerra, quando afinal estava ali a dois passos, na aldeia a trinta quilómetros com a amante vinte anos mais nova; uma tia-avó cujos romances escandalosos avermelhavam bochechas e o seu nome não podia sequer ser mencionado por uma mulher honesta; uma bisavó com tomates, mulher linda de aspecto frágil mas insubmissa e de personalidade forte que despertara paixões arrebatadas; um cunhado escorraçado por todos por ser homossexual, vivendo em escadas como um animal abandonado, alimentado pela avó ás escondidas de todos; o segundo marido da sogra da avó, que parou com as agressões à mulher quando uma frigideira de ovos estrelados aterrou na sua cabeça; o grande amor do avô e da avô com chapéus-de-chuva à mistura e doze anos de diferença, de tal forma que ele, homem sereno e divertido, costumava dizer que tivera de acabar de a criar para poder casar com ela; o primeiro filho da avó que uma febre levou; as cartas de amor dos pais, trocadas entre um buraco de muro. Mas eram apenas rostos que a memória fixara, alguns até o nome o tempo levara. Outros, quase desconhecidos, olhavam-na do passado, pontes para o presente envoltas em névoa, que não conseguia saber de onde vinham.
Foi então que encontrou aquela fotografia de um desconhecido. Ele era um dos homens mais bonitos que alguma vez vira. E a foto, acastanhada e roída pelo tempo e pela humidade de uma casa antiga, era certamente agora muito mais velha do que ele seria quando posou para o fotógrafo. Que idade teria? Trinta anos? Trinta e cinco? Não mais, certamente. Pensou com algum espanto que na sua família, as mulheres tinham sido pessoas de pele e cabelos claros, alguns olhos claros também, mas os homens, haviam sido sempre morenos de tez e cabelos negros, quase sempre ondulados, à excepção do seu avô que tivera os olhos mais verdes que alguma vez vira.
Aquele desconhecido da foto não era excepção. O cabelo farto e negro, um bigode atrevido à época e uns olhos escuríssimos e grandes. Talvez aqueles olhos de pecado pudessem contar alguma história, revelar inconfidências, mas eles apenas contavam o passado em silêncio e um sorriso irónico. O rosto era sério, a boca sensual, mas os olhos riam.
Sim, o desconhecido era sem dúvida um dos homens mais bonitos que já vira, mesmo à luz dos padrões actuais. Talvez porque ela sabe que no íntimo lhe pertence, que há em si algo dele, uma molécula, um electrão, uma simples cadeia de ácido ribonucleico, mensageiro da informação genética que resistiu a gerações para chegar até si.
- Conta-me uma história! – Pedia ela com a foto à sua frente. E os olhos dele continuam a rir, mas guardam segredo. Se falasse, talvez dissesse:
- Hás-de amar-me sempre! Como um antepassado ou mesmo um desconhecido. Mas importante. E enquanto eu calar a verdade, virás ver-me, olhar para mim e imaginar histórias. E no teu coração viverei!
Engraçado, pensou ela, o tamanho das fotos antigas é sempre proporcional à importância dos que foram imortalizados no papel. Mais do que uma máscara ou um retrato a óleo em que a alma é vista pelos olhos de outrém, na foto, é a pessoa que está ali, sem carmesim a mais ou azul de phthato a menos. E a alma sai pelos olhos como quem diz “Lembra-te de mim!”. Máscaras são rostos vazios e o vazio não tem nome. Máscaras são ausências. Mas naquele rosto másculo, pensou ela, não havia máscaras, apenas a sua presença, a alma, o espírito divertido que a olhava com ironia e carinho.
- Tens um nome. Mas já não se diz. Estás aqui como se te olhasses ao espelho. E no entanto, um espelho não guarda as coisas reflectidas, como diria o poeta, e aqui estás tu. Para sempre. Os teus olhos brilham e guardam paixões, segredos, sorrisos! Conta-me uma história! Diz-me quem és!
O sorriso misterioso cala a verdade mas os olhos revelam:
- Fui o filho traquinas que regressou a casa dos pais, a ovelha ronhosa, esperta e cheia de manhas, que trouxe a luz no seu regresso; fui o pai carinhoso que amparou as quedas e empurrou docemente para a frente; fui o amante secreto de tórridos crepúsculos em lençóis de cetim ou camas de palha. Continuarei vivo enquanto procurares quem sou, continuarei a ser importante enquanto escolhes a história em que fui o herói ou o vilão. Guarda-me na tua mala dos segredos, num canto da tua sala ou do teu coração, mas lembra-te de mim! Lembra-te de mim!
Agora é ela quem sorri. Sente-o debruçado sobre o seu ombro a ler o que escreve. Nada mais. Não lhe vai dizer mais nada. Irá deixá-la de novo perplexa e curiosa guardando consigo a verdade que podia completar o seu puzzle e cheia de vontade de o voltar a procurar e ler outras histórias nos seus olhos.
Deixou a foto numa estante. Ele continua lá a olhá-la do passado e todos os dias há naqueles olhos que riem uma história diferente, como se ele próprio lhe dissesse:
- E tu, quem vais ser hoje?

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